Vozes de resistência no Rio de Janeiro

A Mariana acende um fogo para tornar a sua resistência mais visíve
A Mariana acende um fogo para tornar a sua resistência mais visíve

Mareike Bödefeld entrevistou três atores de movimentos/resistências sociais no Rio de Janeiro em um evento em memória de Marielle Franco e Anderson Gomez. O que significa resistência para eles e porque é que, sob o governo de Jair Bolsonaro, ela é ainda mais importante hoje em dia?

Teatro dos Oprimidos - Entrevista com Claudia Simone Dos Santos Oliveira

RUA: Juventude anticapitalista - Entrevista com Mariana Machado de Hollanda Gonçalves

Rede de Mães e Familiares da baixada fluminense Vítima de violência do estado - Entrevista com Nívia Raposo 

Entrevista por Mareike Bödefeld 

 

O que é resistência para você? O que é resistência no Brasil para você?

Claudia Simone Dos Santos Oliveira: Resistência é seguir lutando por direitos. É sair de casa pensando onde e como vou chegar ao trabalho, sabendo que vou passar por algum tipo de violência verbal, física ou psicológica. É agir diante de todo e qualquer ato de injustiça que posso presenciar. É constatar que o Brasil segue reinventando a estrutura racial que determina quem pode viver e quem pode/deve morrer. Neste caso, o genocídio está ligado aos negros e negras brasileiros, dentre os quais eu faço parte. É diante desta constatação, buscar coletivamente, seguir criando, ultrapassando barreiras, realizando sonhos, sorrindo, celebrando a vida e reexistindo todos os dias nas ruas, em manifestações, em luta, nos afetos e na busca pela sociedade que queremos. Resistência no Brasil para mim é lutar contra a violência e desrespeitos aos direitos dos negros e negras que fazem parte desse país. É falar dire- tamente com a negritude que procura de todas as maneiras quebrar o impedimento à sua liberdade. É reinventar sempre, todos os dias, a cada momento para continuar existindo, sob- revivendo e vivendo.

 

Mariane Machado de Hollanda Goncalves: A primeira coisa que me vem a mente quando penso em resistência, é juventude. Che Guevara tem uma célebre frase, que diz que “Ser jovem e não ser revolucionário é uma contradição quase biológica”. As novas diretrizes e convenções sociais que movem a sociedade, quase num movimento dialético, são determinadas pela juventude, e é ela quem tem o papel principal de resistir ao conservadorismo e ao retrocesso. E se tem uma coisa que não é fácil, é construir resistência no Brasil. Todas as instituições ditas democráticas já estão obsoletas, se sustentando em hierarquias de classe e dominadas pelas elites conservadoras. Por isso, a juventude no Brasil não pode se calar, consentir com a opressão sistemática. Esse é um dos motivos de construirmos nossa militância na rua, a parte principal e mais democrática de todas as cidades.

 

Nívia Raposo: Resistência para mim é um processo contínuo de luta emancipatória do povo preto que é descendente de humanos que foram escravizados. Povo esse que sempre teve uma relação muito diferente com seus irmãos. Um povo que mantém afetividade com os seus pares mesmo com tantas adversidades.

 

Porque você participa na resistência? Como você faz parte da resistência?

 

Claudia: O fato de ser uma mulher negra, nascida na comuni- dade (bairros precários/pobres/vulneráveis) no Brasil, provoca resistência, quando o cotidiano é da presença, marcada pela falta de saneamento básico, de serviços de saúde, de espaços escolares que fomentem o pensamento libertador, transporte público de qualidade faz com que tomemos consciência das diferenças de classe, raça e gênero. Participo na resistência, porque não conheci nada diferente. Com minha experiência de vida e os desafios que enfrento cotidianamente, busco potencializar diferentes formas de existir no mundo e imple- mentar a produção de varias maneiras de (re)existir, desviando de pensamentos pré- estabelecidos de quem somos, como mulheres negras brasileiras.

 

Eu faço parte da resistência atuando, acreditando que o Teatro do Oprimido é uma arma muito eficiente na conscien- tização e no combate à opressão. Por intermédio do Teatro do Oprimido, posso analisar o passado, no presente, para buscar alternativas para os problemas que enfrento no cotidiano. O Teatro do Oprimido é um ensaio para revolução na qual o Oprimido busca ser o protagonista das transformações que de- seja. Participo ativamente na Rede Ma(g)dalena Internacional, inovadora experiência estética sobre as opressões enfrentadas por mulheres na busca de alternativas de superação e que produzem Estéticas Feministas para combater o machismo, sexismo, racismo, lesbofobia e todas as formas de opressão que nos atravessa. Atuo como Kuringa que é uma pessoa es- pecialista e pesquisadora do Teatro do Oprimido; facilitador do Método; um artista com função pedagógica, que atua como mestre de cerimônia nas sessões de Teatro-Fórum, coordenando o diálogo entre palco e platéia, estimulando a participação e orientando a análise das intervenções feitas pelos espectadores.

 

Infelizmente Brasil é um país que mata negres e o racismo à brasileira repercute em 2019 com muita violência. Sendo uma mulher negra Brasileira, consciente de que houve e ainda há uma forte tentativa de manter os corpos negros objetificados e desumanizados como uma das maneiras de opressão e manu- tenção da ordem e do status quo da nossa sociedade, sinto-me ameaçada. E não poderia ser diferente, num país onde autori- dades defendem o turismo sexual, a volta de manicômios e o uso de eletrochoques para o tratamento de pessoas portadoras de sofrimento psíquico, persegue, acua e mata as defensoras dos Direitos Humanos. É impossível não se sentir ameaçada num dos países onde todos os direitos e os direitos de todos, que não estão de acordo com as regras hegemônicas impostas pela supremacia branca, estão ameaçados.

 

Mariane: Não diria que me sinto ameaçada, porque não sinto medo. Mas é fato que, se nada fizermos, nossos direitos democráticos estão com os dias contados. Por isso é tão im- portante criar uma resistência que englobe todos e todas, e é assim que nós a construímos. Acho que a participação mais efetiva na resistência é botar (ou pelo menos almejar) botar nossos sonhos em prática. Não adianta criar um movimento que não seja revolucionário! E é exatamente por isso que eu resisto: porque não tenho medo, porque tenho sonhos e não só o desejo incessante, mas o direito de mudar o meu entorno como jovem inserida em um sistema quebrado.

 

Nivia: Eu fui inserida na rede de mães, porque meu filho mais velho chamado Rodrigo Tavares, militar do exército que foi morto por milicianos que de alguma forma faz parte do Esta- do. Já que a maioria não tem vocação, nem tem boa formação para „servir e proteger“ , a todos nós como cidadãos. O grupo continua agindo impunemente e a quantidade de vítimas só aumentar. A morte do meu filho foi muito chocante para o meu bairro e fiz um grafite do meu filho no muro de casa como se fosse um memorial. A rede funciona desde do episódio da chacina da baixada, onde foram mortas 29 pessoas aleatórias por policiais militares insatisfeitos com rigidez na sua corpo- ração. Junto a outras mães que também perderam filhos em condições adversas acolhemos outras mães e oferecemos ajuda psicossociais e ajuda com advogados ativistas que colaboraram com essa rede. Todo dia tenho algumas ameaças veladas...tipo, sempre tem alguém me vigiando. Já tive drones em cima da minha casa. Mas, me preocupo mais com meu filho caçula do que comigo.

 

Você acha que a sua resistência de alguma forma tem sucesso? Quais os limites da sua resistência? Porque?

 

Claudia: Incomoda-me a palavra sucesso. O que é o sucesso, quando o principal é manter-se viva. Sucesso de quem? Para quem? Minha resistência não está ligada ao sucesso, está ligada a preservação de direitos, ao direito de estar viva. Minha/nossa resistência está ligada ao direito à liberdade, ao direito de exi- stir, não ao sucesso. Resistir, nada tem a ver com sucesso, está ligado à quebra de privilégios, a luta ancestral de ser cidadão, de ser humano, de ser sujeito e não objeto em uma sociedade que historicamente colaboramos para sua existência. O limite da minha resistência é a possibilidade de morte, de execução. Acredito que não precisamos de heroínas. Precisamos de ativistas que, independente do território onde estejam, sigam lutando como podem, com os meios possíveis para barrar o avanço do lado predador do ser humano. 

A filha de Marielle Franco (segunda à direita) também participou da apresentação do Teatro do Oprimido
A filha de Marielle Franco (segunda à direita) também participou da apresentação do Teatro do Oprimido

Mariane: Com certeza minha resistência obtém sucesso! A cada pessoa com quem se conversa e muda-se a mente, é um passo bem sucedido. Mas, obviamente, isso não é o bastante. O objetivo é nunca se contentar com essas pequenas vitórias, mesmo que elas sejam incrivelmente importantes. Não conse- guimos impedir o assassinato de Marielle, por exemplo, mas é por militantes como ela que nós resistimos e implementamos a mudança onde quer que passamos. Logo após seu brutal assassinato, conseguimos eleger e colocar no congresso 3 das suas assessoras! É como se tentassem cortar nossas cabeças, mas nascessem mais 3 no lugar. E é esse um dos motivos que acredito que não devemos pensar no limite de nossa resistência, limita-la de alguma forma é, de forma conformista, compac- tuar com uma ordem elitista que mata minorias e os privam de seus direitos todos os dias. Mesmo que uma vitória tenha sido alcançada, deve-se entender que esse é apenas um passo. Não há limites para o espírito revolucionário.

 

Nivia: De alguma forma acredito que nossa resistência tem crescido bastante. Porém, as pessoas ainda têm muito medo. Nesse sentido, usamos um documentário chamado „Nossos filhos têm voz“ que está rodando o Brasil inteiro e pelo mundo. O único limite da resistência é o medo das pessoas. Mas, já fizemos várias participações em manifestações por muitos lugares. Temos feito muita incidência política nos espaços públicos e a tendência é crescer.

 

O que faz a sua organização? Porque a organização faz assim?

 

Mariane: Nossa organização nasceu da luta nas ruas e per- manece nela. Nosso intuito é englobar o máximo de jovens possível, e por isso possuímos vários núcleos de atuação: RUA negritude, RUA feminista, e até mesmo um núcleo para cada universidade. Atuamos desde eleições para docentes e diretórios centrais das universidades públicas do Brasil até a organização de manifestações gerais, que repercutem em todo o país. O RUA faz assim porque acreditamos que a juventude deve se infiltrar e se manifestar em todos os espaços, fazendo a mudança acontecer não só no nosso próprio núcleo de atuação, mas mudar e desestruturar todo um projeto de marginalização de minorias que vigora no Brasil. O RUA faz assim, porque resistência tem que ser democrática, ampla e, acima de tudo, internacionalista.

 

Nivia: Nosso movimento se organiza para atendimento da população que são vítimas do Estado diretamente ou indire- tamente. Tentamos atender uma demanda que cresce no país a medida que percebemos que o Estado legitima ações de agentes que matam, sem confronto e mesmo os que foram expulsos, com problemas psicológicos e desvio de conduta. Percebe- mos o corporativismo do Estado, demonstrando o racismo institucional onde as vítimas são sempre na sua maioria preta, pobre, periféricos e favelados, sendo estes os invisíveis sociais.

 

Fazemos assim, porque o Estado se utiliza num pré julgamen- to contra as vítimas de um código penal antigo e autoritário. Tornando a vítima culpada da própria morte. 

O Teatro dos Oprimidos no evento em memória de Marielle Franco e Anderson Gomez.
O Teatro dos Oprimidos no evento em memória de Marielle Franco e Anderson Gomez.

Criado pelo Teatrólogo Augusto Boal, o Teatro do Oprimido é uma metodologia estética que reúne exercícios, jogos e técnicas teatrais que objetivam a desmecanização física e intelectual dos seus participantes, facilitando a construção de vínculos afetivos e a troca de experiências de forma prazerosa. Um dos seus ob- jetivos é transformar o espectador passivo em sujeito da ação. A base de concepção do Teatro do Oprimido, foi o Teatro Jor- nal (1971 início de sua criação), que em meio à ditadura militar no Brasil, buscava uma maneira de possibilitar o exercício da liberdade, mesmo sobre constante censura e perseguição. O Teatro do Oprimido, começou a desenvolver-se em meio a um regime de caráter autoritário e nacionalista, que censurava todos os meios de comunicação brasileira, instaurando um modelo cruel de restrição de liberdade.

 

Uma das técnicas mais utilizadas do Teatro do Oprimido é o Teatro-Fórum. Este consiste na encenação de um problema objetivo, baseado em fatos reais, em que as personagens vivem um conflito. O personagem denominado oprimido falha na tentativa de superá-lo. O público deve apresentar suas alter- nativas para os problemas encenados, através da intervenção direta no espetáculo, substituindo esta personagem.

 

Teatro do Oprimido é um método utilizado praticamente em todo território brasileiro, com milhares de multiplicado- res. Essa difusão da metodologia no Brasil, deu-se a partir do Centro de Teatro do Oprimido, que é um centro de pesquisa e difusão, que desenvolve a metodologia específica do Teatro do Oprimido em laboratórios e seminários, ambos de caráter permanente, para revisão, experimentação, análise e sistema- tização de exercícios, jogos e técnicas teatrais.

 

A filosofia e as ações desta instituição visam à democra- tização dos meios de produção cultural, como forma de ex- pansão intelectual de seus participantes, além da propagação do Teatro do Oprimido como meio, da ativação e do democrático fortalecimento da cidadania. O CTO implementa projetos que estimulam a participação ativa e protagônica das camadas oprimidas da sociedade e visam à transformação da realidade a partir do diálogo e através de meios estéticos.

 

Dessa forma, o Centro de Teatro do Oprimido (CTO) desenvolve projetos na área da educação, saúde mental, sistema prisional, Pontos de Cultura, movimentos sociais, comunidades, entre outros. Por conta de sua natureza humaní- stica e do potencial do Teatro do Oprimido, está atuante em todo o Brasil e em países como Moçambique, Guiné Bissau, Angola e Senegal. 

Nivia do Carmo Raposo

Nívia do Carmo Raposo é ativista na rede das maes e Familiares da baixada fluminense Vítima de violência do estado.