Uma viagem pelo Hip-Hop cubano

A expectativa dos cubanos é grande, mas o Rap ainda engatinha no país

von Liliane Braga

Neta de índio e baiano, filha de negro com branco, bisneta de português e africano. Que ouve rap brasileiro e cubano. Jornalista. Experiência em música brasileira. Mas sem registro em carteira. Nascida e criada na periferia onde, de trás da janela, diante da tela do computador, vê meninos fumarem maconha numa viela. Meninos cujas mães não encontram vaga para eles nas escolas. Meninos que roubam e cujas infâncias lhes roubam. Rapaz branco, 18 anos talvez. Na garupa, uma garota de uns 16. Ele passa pra ela o revólver, que o coloca na cintura, por dentro da bermuda. Tira a camiseta. Dá pra ela vestir e cobrir a arma.

 

A jornalista foi pra Cuba, um país em que cerca de 45% da população de 11.217.100 habitantes é menor de 20 anos. Lá, pai que não leva o filho à escola é multado. Jovens e adultos que abandonam os estudos recebem incentivo em dinheiro para voltar a estudar. A situação econômica no país, no entanto, faz com que um médico não tenha condições de vida muito diferentes das de um pedreiro, sentencia Raulicer, do grupo de rap TNT de Santiago de Cuba (858 km a leste de Havana). ”No meu bairro não há tiro”, conta outro integrante do grupo, Gerald, 20 anos.

 

Em meados da década de 90, o turismo tornou-se uma fonte de renda importante para o país. Hoje, os cubanos que trabalham nessa área têm condições de viver melhor, recebem em dólar e têm acesso aos produtos estrangeiros que a embargada economia cubana não tem condições de produzir. Foi também quando o Hip Hop tomou força entre a juventude da ilha. No rap cubano, diferente de outros países, eles não sentem necessidade de reinvidicar a afirmação de uma raça ou etnia. O que se vê é a afirmação da mestiçagem e da condição de igualdade entre os seres humanos, como coloca Alexander, 27, do grupo Alto Voltaje. ”José Martí (1853/1895) escreveu ‘dígase hombre, y ya se dicen todos los derechos”, referindo-se ao mentor ideológico da Revolução Socialista cubana.

 

Conheci Alexander e Norlan, do Alto Voltaje em minha visita à Agência Cubana de Rap, empresa estatal criada em setembro do ano passado para ”organizar” os raperos de Havana. Alexander é o criador da ”Companhia de favores”, com a qual conseguiu produzir o primeiro video-clip de Rap cubano no ano passado. ”O jovem que escuta hip hop é o que está preocupado com o que está bem e com o que está mal. É o jovem que está pensando”. A expectativa dos cubanos é grande, mas o rap ainda engatinha no país. Mr. Ben (29), fundador de um dos grupos de Rap mais antigos de Cuba, o Primera Base (1993), esteve no Brasil no ano passado, para o lançamento da compilação ”Soy Rapero - Hip Hop Havana” (Sambatá), e voltou com uma convicção: ”Até que a gente não se una e trabalhe em equipe, como vi no Brasil, não há como conseguir avanço. Mesmo que tenhamos apoio das instituições culturais”.

 

Assisti ao show do Primera Base em Las Tunas, muncípio de Colombia. A caminho de lá, a mudança da paisagem denunciava a saída cenário urbano – rios, montanhas, cabras e búfalos pelo caminho. Ciego de Ávila, Camagüey, Florida... Na parada do almoço, em um hotel deste município, um “recreador” animava o público da piscina ao som de reggaeton e Orishas. O Primera Base foi contratado para tocar antes de outro grupo... de Salsa. Quem agenda os shows é a Agência Rap e convida os grupos que integram o seu ”catálogo” (nem todas as agrupações cubanas estão vinculadas à estatal. Lá também há artistas ”independentes”). Neste verão, os raperos estão sendo levados a se apresentar em outras províncias, que nem sempre estão receptivas às apresentações do gênero. Uma multidão apática recebeu o grupo, que ganhou cerca de 3.000 pesos (equivalente a US$ 120,00) pelo show.

 

De Las Tunas sigo para Santiago de Cuba, passando por pastos com cabras, vacas, cavalos e búfalos. Em Bayamo, muitas charretes (por toda Cuba se vêem charretes...). À noite, chego a Santiago. Caio em uma praça abarrotada de gente. As pessoas esperavam pela chegada do corpo de Compay Segundo, o “patriarca do son”, morto aos 95 anos. Dias depois, quando conheço os rapazes do TNT – Raulicer, Gerald, Alain e Hamlet – comento com eles o fato. ”Compay Segundo era irmão de meu avô paterno”, conta Alain. ”Ele me alertava sempre para fazermos o que queríamos, porque, para ele, a música feita com o que se traz naturalmente daqui – seja reggae, rap, rock - é música cubana. E seguimos levando isso conosco. Nossa música leva algo de Latin Jazz, rithm´n´blues, rock... Mas também leva Son, Changui, Salsa, Guaracha. Somos influenciados por artistas daqui, como Sindo Garay, e o próprio Compay”. Eles me convidam para conhecer a “Calle ‘Átchi’” (Rua H), onde estão se apresentando cerca de 50 grupos de Rap na semana do carnaval – a festa mais importante da província. Ali, sou apresentada aos grupos Puro Sabor Cubano, Sentimento Rapero, Clã C 22, Golpe Seco, La Cosa Nostra, Vatos Locos, Consejo Secreto e Juego de Mente.

 

Sexta-feira, 25/07. Dia da apresentação do TNT na Rua H. Chego mais cedo e entrevisto La Nena, a MC de 15 anos que canta no grupo Juego de Mente. Segundo grau em contabilidade. Pensa em licenciar-se e lecionar. Mas não pensa em deixar o Rap. Nas reuniões semanais promovidas do movimento, ela discute o que se passa em seu país. ”Cuba tem os seus problemas, como todos os países. (Há 42 anos) os Estados Unidos nos têm bloqueado economicamente. A Europa também se pôs contra nós. Mas Cuba continua, pequenininha e valente”. 44 anos de Revolução Socialista e doze anos sem a ajuda da União Soviética. Em Cuba faltam recursos e condições para desenvolver os outros três elementos (discotagem, grafite e dança) da cultura Hip Hop. Mas não faltam educação e saúde gratuitas. Raulicer e Alain fazem o curso superior de ”Estudos Sócio-Culturais”. Gerald estuda ”Promoção Cultural” e Hamlet faz curso preparatório para entrar na Universidade.

 

26 de julho. Aniversário dos 50 anos da invasão do Quartel Moncada. Depois do discurso de Fidel, vamos pra outro aniversário, o do Raulicer. ”No meu bairro, se vai entrando e tropeçando com gente pobre que dá duro todos os dias para que a vida não lhe seja tão salobre (salobra)”, diz a letra de uma das composições do grupo. Na casa dele, no Reparto Portuondo, para chegar ao banheiro é preciso passar pelo único quarto que há. A porta é de madeira e não vai até o teto. Ali bebemos ”cerveza dispensada”, que é a cerveja de tonel. A bebida é transportada em um balde de plástico, desses de lavar roupa. ”Bairro”, a já citada composição, também faz referência ao fato: ”hay muchos que se quejan que no hay nada que comer, pero cuando llega la cervesa tó el mundo saca la jarra pá beber / hay otros que se llevan cantidades a sus casas, le meten su procesos y la misma cerveza que compraron a granel, te la clavan limpiamente en botella a diez pesos / y eso pasa alla en el barrio mío”.

 

Havana, última semana de viagem. Na casa da professora de música Ema Noriega, fico sabendo do ensaio do grupo Free Hole Negro – do qual seu filho, Eduardito, é o baixista. O ensaio é na casa de Lester, diretor da banda (figura que atua no papel do empresário/produtor) que vive no município Playa, na província Ciudad de La Habana. O fundo do quintal onde acontece o ensaio é compartilhado por três casas. Ramira, a mãe de Reinier, percussionista do grupo, aponta para mim o pé de manga, o pé de laranja e o limoeiro coletivos. Além dos já mencionados, formam o grupo um baterista, um encarregado de ”miscelâneas” e quatro MC´s (entre eles, Telmary Diaz, a única mulher a vir para os shows do ”Soy Rapero” no Brasil). A mistura do Free Hole, de agregar banda ao Rap, ainda não é bem aceita pelo movimento em Cuba. No país, os únicos a fazer essa junção são eles e o músico X-Alfonso, que recentemente passou a se embrenhar pelo rap, com um CD em homenagem ao músico Benny Moré. Na quinta-feira, 31 de julho, o show dele no “Café Cantante” do Teatro Nacional contou com dois dos MCs do Free Hole. No lugar, citado na música “¿Que pasa?” do álbum “Emigrante” (Orishas - 2002), só se pode entrar ”de pareja”. E só valem casais heterossexuais. A exigência é comum na maioria das casas noturnas de Havana.

 

2 de agosto, véspera do embarque ao Brasil. Os minutos finais em Cuba são gastos na apoteose do show do grupo ”Cubanitos 20-02”, os ex-companheiros de banda de Mr. Ben que estouraram com sucessos de reggaetton e foram contratados este ano pelo selo francês Lusáfrica. No show a céu aberto, na “Tribuna Anti-imperialista”, a juventude habanera aborrotava o Malecón. Nas palavras do próprio Cubanitos, ”usamos o hip hop apenas como um pretexto”.

 

O rapero cubano não usa toda a força contestatória que tem o rap. ”No mundo não há sistema social perfeito. Talvez este seja o sistema social em que haja mais igualdade, onde haja mais equilíbrio”, diz Raulicer. Muitos acabam usando o talento que têm para falar de amor e temas amenos. Volto com esperanças de que aqui, sim, o movimento Hip Hop usado com toda a sua força colabore na configuração de um novo cenário social. Volto, cheia de CD´s demo, fotos, gravação em vídeo... Disposta e à disposição para me juntar a quem queira sair de trás da janela, da tela e trabalhar por essa idéia.