Luso Metragem

Dez anos de Cinema Português (1994 – 2003)

von Alcides Murtinera

O panorama audio-visual português dos últimos dez anos foi essencialmente marcado pelo êxito, em termos de conquista de audiências, das duas estações de televisão privadas: a SIC (Sociedade Independente de Comunicação) e a TVI (Televisão Independente), que começaram a emitir respectivamente em 1992 e 1993 e são hoje as preferidas dos telespectadores portugueses, em detrimento dos dois canais da RTP (Rádio Televisão Portuguesa), empresa estatal cuja actividade se iniciou em 1957 e passa actualmente por grave crise financeira.

 

À semelhança do que já fazia a estação mais antiga (e vários canais de televisão europeus), a SIC, que passados pouco mais de dois anos após o início da suas emissões se tornou líder de audiências, passou a co-financiar filmes que mais tarde exibiria, após a carreira comercial nos cinemas. O estilo desta estação de televisão, algo influenciada pela brasileira TV Globo (detentora, aliás, de parte do capital), caracteriza-se por uma promoção agressiva e eficaz dos seus programas, técnica que usa também para os filmes cuja produção apoia. Disso beneficiaram concretamente três fitas do realizador Joaquim Leitão, que se contam entre as mais vistas de sempre no cinema português: Adão e Eva (1995), Tentação (1997) e Inferno (1999). A primeira, cujo tema tem exactamente que ver com o mundo da televisão e foi parcialmente filmada nos estúdios da própria SIC, tornar-se-ia um dos filmes portugueses mais vistos de sempre e reuniria dois actores com uma carreira internacional de certa monta: Maria de Medeiros e Joaquim de Almeida.

 

Três vias

 

Os trabalhos do realizador Joaquim Leitão representam o que podemos definir como uma das três vias mais perceptíveis do cinema português da última década: a opção por um modelo narrativo mais convencional (que alguns considerarão algo ”americano” e que é, sem dúvida, acessível ao chamado ”grande público”), sem se descurarem o apuro e certa modernidade a nível técnico e temático. Leonel Vieira, assumidamente apostado numa vertente comercial, não andará longe deste caminho, sendo também o primeiro realizador português a ver um filme seu passado ao formato de DVD (A Sombra dos Abutres, de 1998). Após películas com maior ou menor êxito junto do público, com maior ou menor eco junto da crítica, Vieira consegue concretizar o que seria o desejo de muitos realizadores ao transpor para o cinema, em 2002, no cenário da Amazónia, a obra A Selva do romancista Ferreira de Castro.

 

Numa linha não totalmente oposta, mas mais voltada para o que, do ponto de vista estético, normalmente se designa por ”cinema europeu” e ”de autor”, prosseguem a sua actividade cineastas como Fonseca e Costa e António-Pedro de Vasconcellos, que nos anos 70 protagonizaram um movimento de renovação dentro do chamado ”cinema novo” e vieram posteriormente a investir no campo da co-produção internacional (com países como a Espanha, a França ou o Luxemburgo). O primeiro com Cinco Dias, Cinco Noites (1996), filme financeiramente apoioado pela RTP, logra uma eficiente adaptação ao cinema dum romance semi-autobiográfico do quase mítico líder do Partido Comunista Português Álvaro Cunhal, que o havia publicado com pseudónimo e cuja autoria durante anos evitara assumir. António-Pedro de Vasconcellos, com o apoio da SIC, assina um dos maiores êxitos comerciais dos últimos anos com Jaime (1999), rodado na cidade do Porto e focando problemas tão sérios como o desemprego e o trabalho infantil.

 

Um cinema à margem

 

A abordagem mais crua duma certa marginalidade socio-económica que permanece no país, apesar do desejo cada vez mais premente da sociedade portuguesa duma efectiva integração e afirmação europeia neste início de século, constitui parte significativa da obra de cineastas que poderão definir-se como não-alinhados e cujos trabalhos foram e são regularmente exibidos e elogiados no circuito de festivais internacionais, palcos de constante reconhecimento duma identidade própria da cinematografia portuguesa. Ossos (1997) e No Quarto de Vanda (2000), de Pedro Costa, Os Mutantes (1998), de Teresa Villaverde e quase todos os últimos filmes do recém-falecido João César Monteiro se podem integrar nesta via. Monteiro acabaria por protagonizar uma das maiores controvérsias do cinema português ao realizar, com apoio financeiro dum organismo estatal, o ICAM (Instituto do Cinema, Audio-Visual e Multimédia), um filme em que as imagens são escassas: durante mais de 90% do seu tempo de projecção, Branca de Neve (2001) resume-se a um écran negro e à voz de actores que interpretam o que poderá ser a continuação da famosa história infantil. Mais uma vez se questionou a atribuição de subsídios ao cinema português, algo a que o veterano Manoel de Oliveira de há muito se habituou.

 

Um mestre sempre no activo

 

Caso único em todo o mundo – nenhum outro cineasta em actividade inclui no seu currículo trabalhos do tempo do cinema mudo –, Manoel de Oliveira, nascido em 1908, prossegue com notável energia uma actividade cinematográfica que ultrapassa as fronteiras de Portugal e atrai a participação nos elencos de nomes consagrados, como Catherine Deneuve, John Malkovitch, Michel Piccoli, Irene Papas ou Marcello Mastroiani, cujo último papel no cinema ocorreria em Viagem ao Princípio do Mundo (1997), um dos vários títulos que o nonagenário realizador rubricou na última década e que, mediante a sua colaboração com o produtor Paulo Branco, um dos mais activos a nível europeu, viu exibidos noutros países.

 

O futuro

 

A produção regular de telefilmes, ainda por parte da SIC, permitiu na transição do séc. XX para o séc. XXI alguma prática a técnicos e actores, mas a estrutura demasiado televisiva das produções impediu que se viesse a concretizar o desejo inicial de poder apresentar algumas delas em salas de cinema. A popularidade entretanto alcançada pelos chamados reality shows e, posteriormente, por telenovelas produzidas em Portugal (que destronaram, em termos de popularidade, as suas congéneres brasileiras) alteraram o panorama televisivo português, dando o primeiro lugar das preferências dos telespectadores no horário nobre à TVI, que nunca enveredou pela co-produção de filmes ou pela via dos telefilmes. A SIC acabou por afastar-se também dessa área, cabendo à RTP, como garante da consecução dum serviço público, manter a ligação ao cinema nacional. Esquece Tudo o Que Te Disse (2002), do jovem realizador António Ferreira, telefilme encomendado pela estação estatal, revelou uma qualidade cinematográfica tal que se optou por fazê-lo passar primeiro nos cinemas e só depois no pequeno écran a que inicialmente se dirigia.

 

António Ferreira é um exemplo de jovens realizadores recém-saídos da Escola Superior de Cinema, aos quais começam por ser concedidos meios para a criação de curtas-metragens, que depois lutam pela oportunidade de fazer os primeiros trabalhos de longa-metragem e que são depositários da esperança de continuação e valorização do cinema português.

 

Sendo os portugueses um dos povos da Europa que mais consome televisão e sendo de origem norte-americana a maior parte dos filmes exibidos comercialmente, continua a ser difícil a sobrevivência no plano comercial duma cinematografia que aposte numa linguagem esteticamente menos ”clássica”. Por outro lado, a nível internacional é nas películas de pendor menos convencional e até formalmente mais despojadas que é notada (e apreciada) a diferença do filme português. No quase eterno dilema de agradar ao público nacional e manter abertas as portas do reconhecimento além-fronteiras vai prosseguindo a actividade cinematográfica em Portugal no início dum novo século.