Renato Russo

A religião da tristeza

por Thomas Milz

O Legião Urbana foi um dos três grupos mais importantes do "Rock Brasil'' dos anos 80 e 90, ao lado dos Paralamas do Sucesso e dos Titãs. Renato Russo foi o líder dessa banda de rock brasileira e o porta-voz do que ele próprio denominou "Geração Coca Cola''. Era a figura mais errática de sua geração, dependente de drogas e álcool, homosexual, sofrendo de tristeza profunda desde criança.

 

Os seus poemas e suas músicas mostram uma pessoa frágil e vulnerável, procurando salvação no Budismo, na Bíblia e no amor. Através do messianismo das letras e dos hábitos de Renato o Legião virou quase uma religião entre os jovens. Renato Russo morreu no dia 11 de outubro de 1996, no Rio de Janeiro, em decorrência da AIDS. "Não há mentiras nem verdades aqui, só há música urbana''.

 

Renato Russo - aliás, Renato Manfredini Jr. - nasceu em 27 de março de 1960, no Rio de Janeiro, mas, com pai diplomata, cresceu em Brasília e nos EUA. O jovem Renato sofreu com uma saúde frágil. Uma virose chegou a deixá-lo de cadeiras de rodas por alguns anos. Apaixonado por literatura e música, ele era fã de Shakespeare e dos Beatles e, mais tarde, dos Sex Pistols e do Clash. Ele nunca foi feliz, só quando era criança. Porque ele carregava o mundo nas costas. "Vivendo num planeta perdido como nós, quem sabe ainda estamos a salvo?''.

 

Com 17 anos ele começou a beber. "Bebia porque sofria, depois sofria porque bebia. E bebia muito para ser aceito, para que gostassem de mim. Sentia insegurança, tomava umas doses, ficava espirituoso, virava o rei das pistas de dança''. No ano de 1978 fundou a banda punk Aborto Elétrico e inventou, como fã de Fernando Pessoa, seus próprios heterônimos. O nome Russo foi composto dos nomes do pintor Henri Rousseau e dos filósofos Jean-Jacques Rousseau e Bertrand Russel.

 

Ele descobriu no punk, na filosofia "no future'', o canal para destilar suas revoltas. Além de fazer música, ele, formado em Jornalismo, trabalhava no Ministério da Agricultura como Coordenador de Orientação e Defesa ao Consumidor. Assim Renato, filho da classe média alta, ouvia o "povo falar'' sobre os problemas do cotidiano brasileiro.

 

Em 1982, Renato fundou o Legião Urbana, que lançou o seu primeiro discohomônimo em 1984. Uma das músicas deste disco é "Geração Coca Cola'': "Desde pequenos nós comemos lixo, comercial e industrial, mas agora chegou nossa vez - vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês''.

 

O disco, com músicas cheias de rebeldia e desespero, também mostra uma das mais lindas letras do poeta Russo. "Mudaram as estações e nada mudou, mas eu sei que alguma coisa aconteceu, está tudo assim tão diferente. Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar, que tudo era pra sempre, sem saber, que o pra sempre sempre acaba? Mas nada vai conseguir mudar o que ficou, quando penso em alguém só penso em você, e aí então estamos bem. Mesmo com tantos motivos pra deixar tudo como está, e nem desistir, nem tentar, agora tanto faz, estamos indo de volta pra casa''.

 

O disco "Dois'', de 1986, fala da sociedade brasileira, da vida trabalhadora, de sexo oral, do Brasil "megalopolitano'', mas, além disso, é um espelho dos sofrimentos do Renato, da sua busca - quem é que engole quem, quem é escravo de quem? "Quem me dera, ao menos uma vez, acreditar por um instante em tudo que existe, e acreditar que o mundo é perfeito e que todas as pessoas são felizes''.

 

Renato tinha uma sensibilidade especial para o drama pequeno e mortal."Eu quis o perigo e até sangrei sozinho. Entenda - assim pude trazer você de volta para mim. Quando descobri que é sempre só você que me entende do início ao fim. E é só você que tem a cura para o meu vício, de insistir nessa saudade que eu sinto, de tudo que eu ainda não vi. Nos deram espelhos e vimos um mundo doente - tentei chorar e não consegui''.

 

As letras oscilaram entre o lado romântico radical e pura agressividade. Renato era um pouco esquizofrênico, um garotinho alegre que às vezes virava um monstro de agressividade, quebrando os móveis de hotéis e gritando o que pensava sobre o Brasil. "Que país é este? Terceiro mundo se for, piada no exterior, mas o Brasil vai ficar rico, vamos faturar um milhão, quando vendemos todas as almas, dos nossos índios em um leilão. Que país é este?''. "Vamos celebrar a estupidez humana, a estupidez de todas as nações. O meu país e sua corja de assassinos, covardes, estupradores e ladrões. Vamos celebrar a estupidez do povo, nossa polícia e televisão. Vamos celebrar nosso governo, e nosso estado, que não é nação. Celebrar a juventude sem escola, as crianças mortas, celebrar nossa desunião. Vamos celebrar Eros e Thanatos, Persephone e Hades. Vamos celebrar nossa tristeza, vamos celebrar nossa vaidade''.

 

O estilo da música muda: passa a lembrar os Smiths e o Joy Division. Em busca da salvação ele encontra a religião e o amor, citando a Bíblia. "Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo, tende piedade de nós''. E Luís de Camões: "Amor é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente, é um contentamento descontente, é dor que desatina sem doer''. Foi nesta época que ele pegou o vírus HIV. Dois anos depois saiu o sombrio quinto disco do Legião, "5''. Na primeira música, "Love Song'', cita Nuno Fernandes Torneol, autor de uma cantiga de amor do século XIII. Renato mesmo não pode mais acreditar nestas coisas. Ele disse: "A paixão já passou em minha vida, foi até bom mas ao final deu tudo errado''.

 

"Aprendi a esperar mas não tenho mais certeza...Já tentei muitas coisas, de heroína a Jesus, tudo que já fiz foi por vaidade''. "Não estou mais interessado no que sinto, não acredito em nada além do que duvido. Você espera respostas que eu não tenho''. Deprimido crônico, dependente confesso de álcool e cocaína, Russo sempre atraiu a atenção dos repórteres, fosse pelo hábito de quase não falar à imprensa ou pela torrente de declarações bombásticas que fluía quando ele resolvia abrir a boca. Mas o messianismo das mensagens funcionava mais como negação e grito de socorro que palavra de ordem. A mãe dele revelou: "Ele tentou se matar uma vez, em Brasília, cortando os pulsos. Creio que a morte foi algo muito fascinante para ele''. Para os líderes da geração punk, da geração "no future'', a morte é a saída. Sid Vicious, Cazuza, Ian Curtis, Kurt Cobain. E para Renato também. O último disco do Legião saiu pouco antes. "A tempestade ou o livro dos dias'', uma coleção deprimida - "Vamos falar de doenças incuráveis...Ter esperança é hipocrisia, a felicidade é uma mentira, e a mentira é salvação''.

 

A capa do disco cita Oswald de Andrade: "O Brasil é uma república federativa, cheia de árvores e gente dizendo adeus''. Chegou a vez dele dizer adeus. Renato Russo já havia sido internado antes, com problemas de anemia profunda. Circularam boatos de que ele teria tentado o suicídio. Mas a mãe de Renato disse: "Nos últimos dias teve um período muito grande de depressão. Realmente não queria mais viver. Quis chegar ao fim. Não se suicidou, mas não lutou''. Do jornalista Luciano Almeida Filho: "O dia 11 de outubro de 1996 pode ter sido o dia mais triste para uma geração inteira. Quando os primeiros flashes nas emissoras de rádio e TV anunciavam a morte de Renato Russo, parecia que o chão desaparecia, como por encanto, sob os nossos pés. É como se a última centelha de integridade e honestidade que havia no mundo tivesse se apagado com um balde de água morna e imunda''.

 

Apesar de o cantor se dizer ateu, a família fez questão do culto religioso. Depois das orações, o corpo foi levado para o forno crematório, onde foi incinerado. As cinzas foram espalhadas pelo pai Renato Manfredini em canteiros de bromélias e pândanus no jardim do sítio do mais importante paisagista brasileiro Burle Marx no Rio de Janeiro. Era tocada a "Sonata para piano fantasia opus 17'', de Robert Schumann, música que Renato ouvia muito nos últimos dias de vida.

 

Um ano antes da sua morte, Renato disse numa entrevista: "A dor é inevitável, mas o sofrimento é opcional''. "Quem me dera, ao menos uma vez, explicar o que ninguém consegue entender: Que o que aconteceu ainda está por vir, e o futuro não é mais como era antigamente''. "Sua vida foi um disco aberto. E a todo volume'' (Tárik de Souza).