José Cardoso Pires

A última viagem do romancista da morte branca

por Joaquim Peito

Em Janeiro de 1995 o escritor José Cardoso Pires esteve internado no Hospital de Santa Maria, porque sofreu um acidente vascular-cerebral particularmente grave, que lhe causou a perda da memória, posteriormente recuperada: segundo o diagnóstico, era „um caso de isquémia com recuperação lenta e frequentemente incompleta. O centro da fala e da escrita tinha sido profundamente afectado, o que poderia ter como resultado a sobrevivência num estado de incomunicabilidade total. De um golpe deixava de saber quem era. Mas, algum tempo depois, quis a sorte que voltasse a si para contar aos vivos esse momento único passado num túnel branco. E escreveu um livro entre a memória perdida e a memória recuperada, um relato da sua viagem até às portas da casa da morte e uma reconstituição fiel do seu lento regresso à vida. „De Profundis, Valsa Lenta“( 1997) –uma quase falsa não-ficção conta-nos, deste lado, como se vive no limiar de um estado-coisa, ou como se vive – se quisermos outra metáfora – entre as sombras. É um livro que nos ajuda e ensina a esbater a angústia insuportável que a própria ideia da morte transmite.

 

Teve o privilégio de regressar para estar connosco o tempo suficiente para contar e escrever o que viu e o que sentiu nas terras de fronteira da espécie humana. E para deixar connosco o „livro de bordo“ que ameniza as tempestades da sua última viagem. Uma viagem com o horizonte turvado pela certeza de um não-retorno.

 

Às primeiras horas da madrugada do dia 26 de Outubro de 1998, José Cardoso Pires foi definitivamente apanhado pela morte branca, pelo tempo cego e abandonou o coma profundo em que estava mergulhado há quatro meses, de novo, no Hospital de Santa Maria, na sequência do último acidente vascular-cerebral que sofreu, em Julho deste ano e que se revelaria fatal. Morreu um dos seus maiores e mais respeitáveis escritores portugueses, um escritor que gostava muito de estar por cá, com os familiares, com amigos, com os livros e com Lisboa e os seus locais e bares da má vida. Tinha 73 anos.

 

O amor deste beirão nascido em São João do Peso, Castelo Branco, pela cidade – sobretudo pela Lisboa que o adoptou, ficou definitivamente selado num álbum notabilíssimo da cidade nave: „Lisboa – Livro de Bordo Vozes, Olhares, Memorações“. O capitão do navio é Cardoso Pires, habitante incondicional da cidade, que converteu o espaço, as imagens, as pessoas, os cheiros, as sensações em palavras, próprias e convocadas a outros mestres das letras. Bem alinhadas ou em perigosa indisciplina penetram nos remoinhos da memória, ultrapassam-na, colam-se à pele e envolvem o corpo no sufocante calor da capital. Um livro descritivo, mas com emoções, vida que não precisa de criar personagens, porque desde logo a personagem que é Lisboa habitada, por gente ou por fantasmas, com miradouros e com miragens. É um roteiro assente na proximidade, na familiaridade com lugares, mas também de vozes e de cheiros. E a consciência de que a „distância inventa cidades, como muito bem sabemos“. E agora subam no elevador da bica e água, ou então desçam a calçada, „sous les pavés la page“. Já são raros os eléctricos, mas Cardoso Pires não se esquece de viajar no metropolitano e de falar das obras de arte nas novas estações. Este livro é igualmente meio de transporte. O navio da cidade, a nau dos corvos vai partir. E partiu para sempre.

 

Ao lado da Lisboa de Cesário Verde e da Lisboa de Fernando Pessoa, há agora uma Lisboa de Cardoso Pires.

 

José Cardoso Pires foi sem dúvida, na nossa literatura, um caso singular de escritor em que a qualidade literária marcou indelevelmente o panorama da ficção portuguesa moderna e talvez mesmo a deste século. Creio que nenhum outro escritor português soube usar a sua linguagem tão depurada, e de um grande rigor, por vezes com conotações bem pessoais e intensamente sugestivas como Cardoso Pires. Livros interrogativos, como todos os livros dos grandes escritores.

 

Nos seus dois grandes romances – que desmontam os mitos e emblemas do Portugal rural arcaico e do paternalismo salazarista, bem como dos mutantes anos 60 – „O Delfim“(1968) talvez, o seu mais definitivo contributo para a nossa modernidade e de consagração internacional, e „Alexandra Alpha“(1982), não só Cardoso Pires renova profundamente as estruturas narrativas, sem prejuízo da comunicabilidade, como nos mostra Portugal, ou melhor, vários portugais, em diferentes registos de escrita, do ético ao grotesco. Em „Alexandra Alpha“, romance a que vai pescar a personagem sombria de Sebastião Opus Night, personagem da noite, para que lhe sirva de contraponto à deambulação pela luz secreta da cidade.

„Opus Night nunca na vida desceu à rua antes do anunciar da noite e só no dia do funeral é que abrirá uma excepção a essa regra porque pelo horário dos cemitérios os mortos fecham às cinco. Até lá, entre os câmbios da luz do anoitecer e a ressaca dos whiskies continuará a protestar que Lisboa, à luz do sol, não serve para mais nada senão para lhe baralhar a vista“.

 

Quando publicou „Balada da Praia dos Cães“(1982), livro que ganhou o Grande Prémio do Romance e da Novela, conheceu um destaque público invulgar entre nós, com várias edições e também traduções dela fez-se um filme por Fonseca e Costa, inspirado no assassínio supostamente político do capitão Almeida Santos, ocorrido em 1960. Conseguiu desenvolver uma intriga a partir de situações mínimas, revelando progressivamente as subtilezas da história. Não admira, por isso, que um romance como a „Balada“ seja concebido como uma investigação policial. E aí que se torna ainda mais evidente a economia restrita da sua linguagem, uma vigilância rigoríssima que nunca deixa que assuma o supérfluo e o decorativo. É uma narrativa polifónica, fechada como só o poderia ser num tempo, depois da mudança esperada, o 25 de Abril, em que já era possivel dizer tudo, sem censura.

 

Foi em 1949 que Cardoso Pires iniciou a sua vida literária, com os „Caminhantes e Outros Contos“ que é retirado de circulação pela censura seguindo-se „Histórias de Amor“ (1952) que a censura o chamou de novo para cortar as pouca-vergonhas (tais como a palavra „nu“), e o escritor aproveitou para assinalar que nem só de pão vive o homem, começando a escavar o terreno dos comportamentos que profundamente escapava à literatura da resistência e „Jogos de Azar“, um conjunto de contos publicados em 1963, que reúne textos dos dois primeiros livros. O seu primeiro romance „O Anjo Ancorado“ (1958) é uma autêntica declaração de realismo, mas um realismo transmitido de um modo individualizado, sem atender a convenções, totalmente seduzido pela ficção do neo-realismo e do surrealismo, em total ruptura com a ficção de raíz rural, que marca desde Camilo o romance português. A problemática social está presente em cada página mas de um modo subtil, constituindo o idiolecto do autor. Todas as personagens (ricos e pobres) parecem presas de uma marca cega, a da sociedade portuguesa, atabafante, opressiva, totalmente isolada das outras nações. A beleza da aldeia costeira – visitada por uma mulher e por um homem vindos de Lisboa, num sábado pela tarde – parece uma maldição.

 

„O hóspede de Job“ , novela publicado em 1963, foi o seu primeiro romance traduzido e que recebeu o Prémio Camilo Castelo Branco da então Sociedade Portuguesa dos Escritores. Não é fácil sintetizar num verbete como este o que se considera fundamental na escrita de Cardoso Pires. No plano dos conteúdos, frize-se a sistemática reflexão sobre Portugal e os Portugueses, o grande tópico que percorre toda a sua obra. Um lado de historiador e de ensaísta contando um pouco da história nacional, tanto na sua objectividade – isto é, naquilo que podemos encontrar em historiadores encartados – como, sobretudo, na sua subjectividade: quer dizer, no modo como uma comunidade vive, entende e mitifica o seu percurso. Na sua ficção Cardoso Pires analisou mentalidades, valores, comportamentos subsumidos em retrato ideológico e político das várias classes sociais, desde o Marialva de alta burguesia fundiária (O Delfim) até o burgês mais nitidamente urbano, mais lúcido, porém incapaz de agir (O Anjo Ancorado), chegando ao rural que migra à busca de trabalho (O Hóspede de Job), „Os Caminheiros“ ou a uma vasta gama de marginais de toda a ordem que pululam nos bairros populares de Lisboa e não só.

 

Cardoso Pires deixou-nos páginas inesqueciveis, que vão ficar, graças às suas traduções, arquivadas no melhor da literatura universal.