"Atenção, este livro leva uma pessoa dentro"

Entrevista com José Saramago

por Bete Köninger

Ele diz que seus livros deveriam ter sempre na capa uma fita avisando o leitor: "atenção, este livro leva uma pessoa dentro". Foi para tentar conhecer melhor esta pessoa que entrevistamos José Saramago, aclamado como um dos mais importantes escritores contemporâneos de língua portuguesa. Durante a Feira do Livro realizada em Frankfurt, em outubro passado, que teve Portugal como país-tema, o romancista foi presença constante numa peregrinação por leituras e debates, desmentindo com seu jeito aberto, seu humor fino e um brilho de ironia no olhar os que acreditam que, por trás daqueles óculos, só pode haver um homem austero, pouco dado a sorrisos. Ao completar 75 anos, mas com apenas 20 de carreira literária, Saramago já recebeu vários prêmios, entre eles o "Camões", em 1995, e é hoje forte candidato ao prêmio Nobel de literatura - este ano, a decisão do júri ficou entre ele e o italiano Dario Fo, que acabou sendo escolhido.

 

No Brasil, onde o conhecimento da literatura vinda do chamado "país irmão" muitas vezes não passa de Fernando Pessoa, Saramago é o mais popular autor português e tem seus livros nas listas dos mais vendidos por várias semanas. Ele lembra que, em Portugal, a literatura brasileira também já não é muito procurada e atribui isto, em parte, a questões do mercado editorial, como também ao momento político e histórico diverso em que se encontram os dois países - o Brasil, voltado para a órbita dos Estados Unidos, e Portugal sendo "sugado para o interior da Europa". O autor acredita, porém, que se poderia criar um movimento amplo de divulgação, promovendo-se viagens anuais de escritores aos dois países, com leituras e discussões de livros em pontos estratégicos do circuito cultural. Sua análise deste desconhecimento mútuo, entretanto, vai mais longe:

 

"Uma das questões que o Brasil teria de resolver na sua relação conosco é saber quando é que começa a literatura de língua portuguesa para vocês. Porque se começa só com o grito do Ipiranga, vocês separam-se de seis séculos de literatura que são nossos, mas que eu considero que também deveriam ser vossos. Admito também que alguns escritores portugueses possam ter esta idéia de que o Brasil não interessa muito, de que o que interessa são as grandes línguas cultas, ter livros traduzidos em inglês, francês, alemão e por aí. É um erro. Da mesma maneira que é um erro ignorar, de um lado, a Espanha e, do outro, a América Latina, que são milhões de pessoas que têm uma cultura que, não sendo comum de todo, é de ida e de volta, de troca de coisas boas e más. Portanto, essa espécie de pan-iberismo, sem qualquer tentação imperial, evidentemente seria qualquer coisa a criar ou renovar, se já existe em estado latente".

 

É também na Espanha, na ilha de Lanzarote, que o escritor decide viver depois da polêmica causada pelo romance "O Evangelho segundo Jesus Cristo", proibido pelo Ministério da Cultura português de concorrer a um prêmio literário europeu, em abril de 1992 - o ministério alegava que o livro ofendia a maioria católica do povo português. A decisão do governo só fez com que a venda do livro disparasse - "saiu-lhes o tiro pela culatra", brinca Saramago - mas deixou o autor "profundamente magoado" por viver, num período democrático, a experiência da censura.

 

"No tempo da ditadura", diz ele, "as regras do jogo eram estas, eles contra nós, nós contra eles. Agora, numa situação democrática, com que direito é que um governo decide sobre o que ofende ou não? Quando deixei Portugal, não quis entender que isso se tratava de um auto-exílio ou que tivesse cortado relações com o meu próprio país. Nada disso. Mas eu às vezes digo que a gente, quando tem um vizinho que incomoda, procura explicar que não deve fazer barulho. Mas se ele insiste, a gente muda-se. Foi o que eu fiz".

 

A controvérsia com instituições como a Igreja sempre acompanhou o trabalho de Saramago e está presente até no prefácio que escreveu para o livro "Terra", de Sebastião Salgado, onde, mais uma vez, Deus aparece na história. O autor ironiza: "Tenho ainda umas contas a ajustar com este senhor. Não porque ele exista, porque creio que não existe, mas como anda dentro da cabeça das pessoas, é como se existisse".

 

Em novembro, Saramago estará no Brasil lançando seu novo romance, "Todos os nomes", onde, apesar do título, apenas um personagem tem nome - segundo o autor, um nome "comum e sem importância": José. Já na obra anterior, "Ensaio sobre a cegueira", publicado em outubro na Alemanha, numa tradução de Ray-Güde Mertin, o leitor não encontra nomes, mas sim o primeiro cego, a rapariga dos óculos escuros, o velho da venda preta, a mulher do médico, ou aquela que não se sabe quem seja - todos anônimos. Para o escritor isto acontece porque "estes personagens somos todos nós, que nos estamos tornando cada vez mais anônimos, cada vez mais números, instrumentos, clientes. Cada um de nós começa a não saber quem é".

 

Sem nunca esconder sua opinião política, como membro do partido comunista, Saramago costuma dizer que provavelmente não é um romancista, mas sim "um bom ensaísta que escreve romances, porque não teve quem lhe ensinasse a escrever ensaios". Ele considera-se um pessimista quanto ao futuro que os homens vêm reservando a si próprios e conta que, quando publicou o "Ensaio sobre a cegueira", as pessoas lhe perguntavam como é que uma pessoa como ele podia escrever um livro assim tão terrível. Sua resposta: "O livro é apenas uma pálida imagem da nossa realidade. A verdade é que o instinto dos animais defende melhor a vida do que a nossa razão, que, pelo contrário, tem servido para dominar, humilhar, explorar o outro. É evidente que o mundo é violento, não há nada a fazer. Mas nós acrescentamos à violência a crueldade, que é uma invenção humana. Portanto, às pessoas que diziam não suportar a leitura do meu livro, eu respondo com a pergunta: vocês não conseguem ler este livro, mas conseguem viver neste mundo?"

 

Críticos alemães chegaram mesmo a classificar o romance de moralista, enquanto outros, como a brasileira Beatriz Berrini, em artigo publicado no Jornal de Letras, descobriam no escritor aquele que é capaz de ver a realidade despida de ilusões e "guiar os cegos". Um escritor com uma missão esclarecedora? Saramago afirma que nunca teve tal pretensão, mas declara:

"Eu nunca separo o escritor que eu sou do homem que eu sou, e até diria do cidadão que eu sou. Embora eu nunca tenha usado a literatura como panfleto político, tendo eu as idéias claras que tenho, é inevitável que baste ler um livro meu para saber que quem os escreve só pode pensar de uma certa maneira. Qualquer palavra que eu diga, mesmo que esteja a dizer outra coisa, está ao mesmo tempo dizendo isso. O que eu faço nos meus romances é falar simplesmente daquilo que penso, sem pretender dar ao leitor qualquer lição. Mas eu estou nos meus livros."

 

Saramago vê nisso o motivo para a ligação que se estabelece entre ele e seus leitores. "Eu recebo muitas, muitas cartas de leitores de Portugal, Espanha, Brasil e de todo o mundo. E eu acho que eles não escrevem ao escritor, mas sim ao homem. Isto talvez explique porque é que eu tenho tantos leitores, por exemplo, no Brasil". O que nos convence de que o escritor, afinal, tinha razão quanto ao recado na capa de seus livros: se quiser mesmo saber quem é José Saramago, guarde esta entrevista e vá direto à leitura de um de seus romances. Você vai encontrá-lo lá dentro.