Tradição viva e história afro-brazileira

nos encontros entre religião e políticas públicas

É característico do pensamento ocidental compreender o tempo e a história de forma linear, o que levou a entendimentos substancialistas sobre tradição. Sendo o passado fixo e imutável, tradições poderiam ser divididas entre reais ou inventadas, as primeiras devendo ser avaliadas pela pertinência de sua ma- nutenção, as segundas acusadas por sua falsidade intrínseca. Neste artigo, apresento como a Associação Beneficente Cultural Africanista Templo de Yemanjá - ASSOBECATY, local de culto aos Orixás africanos no Brasil e guias de Umbanda, tem criado articulações entre religião, política e proteção social, abrindo novas possibilidades para o entendimento do que seja tradição e história a partir de como vividas por religiosos afro-brazileiros contemporâneos. 

De Marcello Múscari

Cerimonia em defesa da ‚Gruta da Mãe Oxum‘ da Praia da Alegria em Guaíba - Rio Grande do Sul

Cerimonia em defesa da ‚Gruta da Mãe Oxum‘ da Praia da Alegria em Guaíba - Rio Grande do Sul 

Orixás fazem política

Naquela noite, 15 de março de 2013, o salão dos Orixás da Assobecaty abrigaria uma outra cerimônia, que não os tradicionais Xires, como são referidas as festas do Batuque do Rio Grande do Sul em que Orixás são invocados por canto e toque de tambor a se manifestar entre os vivos pelos cor- pos dançantes de seus filhos. O ambiente é o mais solene da casa, amplo, repleto de imagens religiosas e artefatos rituais, e completamente acarpetado em azul, cor de Yemanjá, Orixá principal de Mãe Quina, matriarca fundadora do Axé da casa cerca de 80 anos atrás e falecida em 2000.

 

Contando cerca de quarenta pessoas no salão, entre amigos da casa, crianças da comunidade, representantes do poder público, autoridades políticas e lideranças religiosas, Mãe Car- mem de Oxalá anunciou o início da solenidade de inauguração do Telecentro vinculado à biblioteca Moab Caldas, sediada na ASSOBECATY. Com imagens de santos católicos represen- tando antigos orixás africanos marcando presença por sobre seus ombros, e políticos locais em modestas roupas frente a exuberância das vestimentas cerimoniais típicas das religiões afro-brasileiras, Mãe Carmen leu um juramento aos orixás feito por sua Mãe e antiga liderança do terreiro e disse “as vezes somos acusados de inovar muito, de trazer muitas coisas novas para o terreiro, mas não estamos inventando a roda, tudo o que se faz hoje é o que já se fazia antes.

 

É a biblioteca Moab Caldas, fundada por minha mãe, com o apoio dos Orixás, que vai se ampliar como Telecentro”. E, após a apresentação de um grupo de capoeira também sediado no terreiro, a religiosa seguiu em seu discurso: “nossos ancestrais tiveram muita dificuldade para viver sua religião. Atualmente vivemos as mesmas dificuldades e temos que encontrar modos de passar por elas, temos que ver de que modo estas tecnologias podem nos ajudar a nos livrar da chibata, pois ela não parou de nos açoitar, somente mudou sua forma. Estamos inaugurando aqui um Telecentro que deve servir como instrumento de fortalecimento da comunidade, mecanismo de ensino e arma contra a opressão das populações negras e de periferia, ainda hoje marginalizadas. Em uma rede de computadores, cada máquina tem um nome e aqui cada uma vai ser identificada pelo nome de uma grande Mãe de Santo gaúcha. Desse modo, quando alguém ligar uma máquina vai ter contato com seus ancestrais através da história destas personalidades invisibilizadas. Espero que com o Telecentro cada religioso que venha aqui para utilizar o computador crie um blog e passe então a ser protagonista da própria história. “É inclusão digital no Axé!”.

 

Após seu discurso, fomos todos conduzidos à sala anexa com os computadores recentemente ativados e saudados por falas de representantes do poder público que ressaltaram a importância das ações em proteção de comunidades carentes e de terreiro protagonizadas pela Assobecaty. Com Mães e Pais de santo vestidos em suas extravagantes roupas cerimoniais sentados cada um em frente a um computador batizado com o nome de uma Mãe de Santo do Batuque do Rio Grande do Sul, o Telecentro foi, cerimonialmente, apresentado ao seu público. 

Telecentro e Biblioteca Moab Caldas e seus usuários

Telecentro e Biblioteca Moab Caldas e seus usuários 

Sincretismos e outros híbridos.

A imagem é por si só tanto fascinante quanto desafiadora: de que modo exatamente os Orixás, ancestrais divinizados de origem Yoruba, teriam apoiado a fundação de uma biblio- teca comunitária em um bairro na periferia do sul do Brasil? Ou ainda, como santos católicos vieram a representar estas divindades africanas? O que fazem representantes do poder público inaugurando um Telecentro em um templo religioso?

 

O que cria a relação entre inclusão digital e Axé, o princípio vital Yoruba mantido vivo nos muitos Candomblés, Batuques e outras religiões afro-brasileiras? Por fim, o que esta cena pode nos ensinar sobre a noção de tradição e história como são experimentadas por aqueles que as vivem?

 

A Assobecaty é uma casa de Batuque e Umbanda desde 2000 sob liderança de Mãe Carmen de Oxalá, que herdou o templo de sua mãe biológica, também Mãe de Santo. É ainda, desde 2012, um “Ponto de Cultura”, instituição da sociedade civil aprovada em edital público para receber apoio e recursos do Estado para a realização de políticas de cultura e inclusão social. Além do Telecentro comunitário, a Assobecaty tem longa trajetória de atuação em defesa dos direitos e visibilidade dos povos de terreiro (como tem sido recentemente deno- minados certos grupos praticantes de religiões afro-brasileiras) e articulação com políticas públicas para promoção da prevenção a transmissão do HIV, através do projeto “Batuques do Sul promovendo a vida”. Desde 2012, desenvolve também um importante trabalho em segurança alimentar através do projeto “Ajeun Ilera – alimento saudável para todos”, orga- nizado a partir de lideranças religiosas afro-brasileiras que intermediam a compra de produtos alimentícios orgânicos de micro-produtores rurais, para distribuição entre comunidades urbanas vulneráveis.

 

 

O engajamento político e atuação conjunta com políticas públicas muitas vezes rendeu críticas à liderança da casa, como ilustrado pela necessidade sentida pela Mãe de Santo de jus- tificar ao público as acusadas inovações protagonizadas por sua Associação religiosa: “Não estamos inventando a roda”, como afirmou a liderança, mas somente continuando em novas formas o trabalho já iniciado há muitos anos por sua Mãe. Outra imagem merece ainda ser descrita para nos ajudar a pensar em tradição como experimentada por esta comunidade religiosa.

 

Em 2013, o projeto “Batuques do Sul promovendo a vida” estava em fase de implementação, realizado pela Asso- becaty atuando como ONG a partir de fundos públicos para prevenção das DSTs (Doenças Sexualmente Transmissíveis) e AIDS. Estávamos novamente em um espaço de culto aos Orixás e Guias da Umbanda (como é comum a confluência nesta região do país), desta vez em outro município pobre da região metropolitana de Porto Alegre, lideranças religiosas e suas “famílias de santo”, moradores do entorno do terreiro, representantes do poder público, pesquisadores e ativistas no campo da prevenção à AIDS. Mãe Carmen, facilitadora da Roda de Conversa, agradecia ao Estado brasileiro por re- conhecer as terreiras como espaços de promoção de saúde e prevenção. Sentados em círculo ocupando o salão usualmente reservado às cerimônias religiosas, técnicos em prevenção e lideranças religiosas orientavam a conversa sobre saúde, sexu- alidade, direitos e prevenção. Como autoridade religiosa Mãe Carmen dizia: “O corpo é o templo do Orixá, que sempre quer seu filho saudável. Axé, a energia que emana dos Orixás, é vida, e é de responsabilidade do Filho de Santo zelar por esta energia através do cuidado de si.” 

Oficina de percussão afro-brazileira para crianças. Salão dos Orixás da Assobecat

Oficina de percussão afro-brazileira para crianças. Salão dos Orixás da Assobecat 

História, tradição e ação

É característico do pensamento ocidental compreender o tem- po e a história de forma linear, o que levou a entendimentos substancialistas sobre tradição. Sendo o passado fixo e imutável, tradições poderiam ser divididas entre reais ou inventadas, as primeiras devendo ser avaliadas pela pertinência de sua ma- nutenção, as segundas acusadas por sua falsidade intrínseca.

 

Ocorre que o tempo como concebido pelos ancestrais sistemas filosóficos Yoruba (eu não ousaria afirmar que isto possa ser representativo de todo o continente Africano) e encarnado nas práticas rituais e religiosas afro-americanas jamais conheceu esta linearidade, e prefere operar em forma de espiral. Ser filho de um Orixá significa compartilhar substância e história com o ancestral; o Orixá revive através de seus filhos, os religiosos contemporâneos, e a vida de cada filho participa do que faz do Orixá o que ele é – por isto a importância de se manter um corpo saudável. Um corpo fraco é também um Orixá fraco. Ao se estabelecer a relação entre um filho de santo e seu Orixá (ancestral mítico feito divindade) afirma-se que o ancestral revive no filho presente, e este, informado e devoto, orienta sua vida pela grandeza dos feitos daquele, rememorados em mitos e narrativas acumulados ao longo de gerações. Cada filho de Orixá é ele próprio um Orixá para as futuras gerações, potencial inspiração para novos mitos, quando protagonistas de feitos dignos de serem cantados e de entrar para a história.

 

Quando presenciamos acusações ou debates em torno da tradicionalidade de uma prática, o que vemos é uma disputa pelo passado, não exatamente porque uma versão seja mais fiel ao que realmente aconteceu, mas porque elas têm efeitos distintos sobre o presente. Afirmar, por exemplo, que um lo- cal de culto a divindades afro-brasileiras deveria restringir-se aos limites de atuação reservados ao religioso; ou mesmo que sistemas religiosos não devem se comunicar para preservar as tradições tem como efeito mais do que estabilizar o passado, controlar as possibilidades do presente. É provável, sim, que não seja exatamente parte da tradição dos locais de culto aos Orixás no Brasil trabalhar em parceria com o Estado para a elaboração e implementação de políticas públicas diversas, ainda que isto certamente tenha mudado nas últimas décadas. Contudo, também é verdadeiro que pais e mães de santo à fren- te de terreiros sempre se valeram de todos os meios, mágicos e mundanos (pois para eles há pouco sentido em operar esta diferenciação), para proteger e engrandecer suas comunidades, fortalecendo assim seu Axé. Esta parece ser a história vivida pela Assobecaty, que é somente uma das muitas comunidades religiosas negras afro-brasileiras a viver e produzir tradição.

 

Ao final, quando se chega às portas da Assobecaty o que se encontra não são somente mitos de antigas divindades af- ricanas das quais podemos decidir nos tornar devotos, dentro dos limites estabelecidos para a religião, mas um local que se atribui a missão de honrar os esforços de seus antepassados em manterem-se vivos e transmitir seus conhecimentos, valores e práticas. Moab Caldas, nome escolhido para batizar a pequena biblioteca comunitária fundada no terreiro, foi um político local negro, jornalista e mobilizador de uma rede de proteção de casas de Umbanda. Mãe Quina de Yemanjá, uma Yemanjá que nasceu, fundou e perpetuou o batuque do Rio Grande do Sul na tradição de Cabinda, deusa dos mares e grande mãe, sincretizada com a católica Nossa Senhora dos Navegantes (ela própria feita uma Yemanjá pela história) e, pela força de sua Orixá, sempre gostou de ver crianças em seu terreiro, as quais teve por missão proteger.

 

Ser praticante de uma religião afro-brasileira é estar em relação com deuses ancestrais, saber-se um com uma energia que atravessa os séculos e faz de uma existência presente a manifestação de uma força negra que a transcende. Isto se dá pelo aprendizado de histórias e mitos, ritmos e danças, reclusão ritual e manutenção cotidiana de um terreiro, leitura de livros de história ou conversas numa cozinha de santo.

 

Quando os filhos dos Orixás começaram a adoecer devido à perniciosa epidemia, ameaçando e apequenando seus Axés, atuar pela prevenção a AIDS emerge como tradição. Quando a racista sociedade brasileira e suas políticas públicas seletivas insistem em esquecer as histórias das lideranças religiosas afro-brasileiras ou manter seus filhos alienados do conheci- mento necessário para uma inserção digna na vida urbana contemporânea, fundar uma biblioteca ou promover inclusão digital, por inusitado que possa parecer em um local de culto a deuses ancestrais, também deve ser reconhecido como um gesto profundamente tradicional, a despeito da novidade de seu conteúdo.

 

Em memória de Mãe Quina de Yemanjá, Mãe Rita de Xangô, Mãe Dalila de Ode, Mãe Apolinária, Mãe Ester deYe- manjá, Mãe Palmira de Oxum, Mãe Otila de Ossanha e Moab Caldas. 

Apresentação do Afoxé infantil na Feira do Livro de Porto Alegre - RS.

Apresentação do Afoxé infantil na Feira do Livro de Porto Alegre - RS. 

Marcello Múscari possui graduação em Ciências Soci- ais (ênfase em antropologia) Mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e atualmente desenvolve seu Doutorado em Antropolo- gia Social e Cultural pela Universidade de São Paulo em parceria com a Universität zu Köln. Em sua trajetória tem realizado pesquisas sobre religiões afro-brazileiras e modernidade a partir de abordagens interdisciplinares sobre ritual e socialidade.