Sônia Guajajara:

Uma mulher enraizada, uma mulher guerreira e uma ativista incansável

 por Mareike Bödefeld

Matices fez uma entrevista com Sônia Guajajara como parte do tópico especial „Mulheres na Liderança“. Trata-se de suas experiências como mulher conhecida, como líder e como política. Sônia é muito bem conhecida internacionalmente: Ela esteve nas Nações Unidas em 2008, se encontrou com a assessoria do então presidente dos Estados Unidos Barack Obama para falar da importância da organização indígena e dos indígenas para a preservação do Meio ambiente e para o equilíbrio do clima e participa regularmente em debates internacionais.

Por uma alternativa ao poder, Sônia leva a  voz indígena para Brasília.
Por uma alternativa ao poder, Sônia leva a voz indígena para Brasília. Foto: ubyteprodutora

Queremos saber mais sobre sua trajetória. Quem é Sônia Guajajara, quais as suas origens e como você se reconhece hoje? 

 

Sou uma mulher indígena, nascida e criada nas terras de meus ancestrais, a Terra Indígena Arariboia, do povo Guajajara, no Maranhão. Começo a falar de minha terra, pois como toda mulher indígena, sou uma mulher-terra, uma mulher enraizada. Convivendo tão perto com nossa Mãe Natureza, e com o conhecimento milenar de nosso povo, vamos tomando consciência do mundo em que vivemos, e como a ganância descontrolada de alguns está destruindo nossa casa comum. Eu estudei, me formei em Letras, então conheço muito bem a língua e as estratégias de quem só enxerga lucro no lugar da floresta. E quando nós tomamos consciência de algo assim, não temos como ignorar. Então, eu hoje me defino como uma mulher guerreira, uma mãe orgulhosa de meus filhos que também são lutadores, uma ativista incansável na defesa dos direitos de nossos parentes indígenas de todo o Brasil. Eu luto pelo respeito às vidas indígenas, eu luto por nossos territórios tradicionais, e eu luto pelo futuro da humanidade, pois sem terra indígena, não tem floresta, e sem floresta, não tem futuro.

 

Como se tornou líder do povo Guajajara? Como você se tornou referência dentro da APIB e internacionalmente?

 

Qualquer pessoa indígena no Brasil que conheça a história de nossos povos e sinta na pele o que é viver ameaçado por garimpeiros, por madeireiros, por invasores ilegais, sente um chamado a ser um líder, uma líder. E nós mulheres temos ainda mais, pois temos de nos afirmar em um meio que é dominado por homens. Então, acredito que quando tomei consciência do que era a história da colonização, do que é o genocídio dos povos originários no Brasil e no mundo – o maior crime contra a humanidade de todos os tempos e que segue acontecendo até hoje-, eu tive esse despertar para o ativismo, para a luta. Nosso lugar de liderança, ele vai se consolidando porque nós rodamos o Brasil, nós conhecemos os problemas dos nossos parentes de norte a sul, nós mostramos que estamos lado a lado, de mão dada de verdade. Isso requer dedicação, comprometimento, tempo, energia. E eu tenho isso para oferecer para a luta dos Povos Indígenas do Brasil, para a luta pelo meio ambiente. Ninguém se torna liderança do dia para a noite. Só se torna liderança quem conquista a confiança daqueles que estão juntos... Se não o líder vai andando, crente de que o povo está junto, vai andando, vai andando, e quando olha pra trás se percebe sozinho! E ninguém pode ser líder de si mesma, né?

 

É difícil ser uma líder sendo mulher? Que dificuldades você enfrentou no seu caminho?

 

Veja só, se essa entrevista fosse com um homem, certamente não perguntariam para ele se é difícil ser um líder. Então a dificuldade já se mostra por aí. Nós estamos em um país que convive com ocorrências cotidianas de violência contra a mulher, de feminicídio, onde se naturaliza estupro, abusos do corpo da mulher no trabalho, nas ruas, no transporte público. E queria aqui inclusive falar da violência contra as mulheres trans e travestis, que também sofrem com os mesmos inimigos – o machismo, a misoginia, a cultura do estupro. Quando uma mulher se levanta contra essa barbárie, contra esses crimes, contra a desigualdade salarial, o que não falta é um homem – ou dez – para dizer que estamos de “mimimi”, que queremos ser superiores, que somos loucas, que somos feias, que somos mal amadas. Veja que situação: querem que soframos caladas, pois o próprio ato de falar se torna munição para nossos inimigos. Eu sofri tudo isso, como qualquer mulher que rompe com as amarras do machismo no Brasil, mas não me calei, e nunca me calarei. Quero viver um país em que as mulheres – cis e trans – sejam plenas em direitos, sejam respeitadas em todos os espaços que pisam. Quero que minha filha viva num país diferente, que não tenha um presidente como esse, que reitera dia após dia os valores de homens brancos cruéis, mesquinhos e violentos. Eu me inspiro em lutadoras indígenas como Tuíre Kayapó. Vocês conhecem a história dela? Se não, procurem aí no Youtube para entenderem o que é a força da mulher indígena. Ela e tantos outros exemplos de mulheres guerreiras, ancestrais, que nos dão forças para seguirmos a nossa luta.

Você é uma referência internacional, o que precisa mudar para que mais mulheres sejam líderes e que conselho você daria às mulheres? Por que mais mulheres deveriam ter posições de liderança?

 

Olha gente, nós, mulheres indígenas, entendemos que precisamos estar juntas, construir juntas nossa liderança. Tem pautas que só as mulheres conseguem compreender e dar vazão. Por isso construímos a ANMIGA – Articulação Nacional de Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade, que acabou de realizar a segunda Marcha das Mulheres Indígenas, que reuniu em Brasília mais de 4 mil mulheres de 172 povos, de todos os biomas do Brasil agora em setembro. Isso demonstra a potência que tem a nossa luta quando nós a construímos coletivamente. Eu acredito que as mulheres precisam estar juntas: mulheres indígenas, mulheres quilombolas, mulheres operárias, estudantes, trabalhadoras, pesquisadoras... Não importa onde os pés dessas mulheres pisem, o que importa é que elas se deem as mãos e compreendam que só tem alternativa para a transformação dessa sociedade a partir da organização e da atuação política. Eu queria aproveitar e mencionar algumas mulheres indígenas da minha geração de luta, a quem me orgulho muito de chamar de amigas, de irmãs, de companheiras de luta: Puyr Tembé, Cristiane Julião Pankararu, Célia Xakriabá, Shirley Krenak, Braulina Baniwa. Quem não as conhece, corre para seguir nas redes sociais que essas mulheres são o que tem de mais potente no Brasil! Quando as mulheres ocupam posição de liderança, elas transformam o mundo. Isso está claro! E estamos lutando por nosso espaço. Sabemos que o poder não se distribui de boa vontade, não. Quem tem o poder nas mãos não quer compartilhar. Agora, nós estamos aqui para lutar pelo que é justo e para mostrar que nós, mulheres, especialmente nós mulheres indígenas, temos toda a capacidade e a força para conduzir o mundo por um caminho de paz, de cura, de justiça. Já estamos trilhando este caminho, e nosso movimento não tem volta. Chama que elas vêm!

 

Além das causas indígenas, você também é engajada em outras iniciativas, como por exemplo para o empoderamento das mulheres ou em outros movimentos? Nós não somos seres unidimensionais, não é?

 

Veja, eu sou mulher, sou indígena, sou mãe, sou diplomada em letras, sou da Amazônia, sou Brasileira, sou Nordestina... Só nesse fôlego, veja quantas coisas que eu sou! E quando vamos tomando consciência de cada elemento de nossa identidade, vamos assumindo novas responsabilidades de entender o que está errado e lutar para mudar essa realidade. Então, eu luto contra a fome, pois como brasileira, como mãe, me dói profundamente ver milhões de pessoas sem ter o que comer, ver mães chorando por não poder alimentar seus filhos porque está desempregada, porque o gás está num preço impossível, porque o quilo da carne está o olho da cara. Eu luto também contra o apocalipse climático! Nós que vivemos em conexão profunda com a natureza, estamos sentindo há tempos que ela está cansada do que a humanidade tem feito com ela e estamos tentando alertar ao mundo: não haverá futuro para ninguém, para nenhuma etnia, para nenhuma cultura, para nenhum país, se continuarem devastando dessa forma nosso planeta. Eu luto por um país mais justo, eu luto para que todos tenham acesso à cultura, para que nosso país seja um país de oportunidades... Eu luto contra o machismo, contra o racismo, contra a LGBTQIfobia. Eu entendo que não há luta isolada – estamos em conexão, e quando nos conectamos com quem é diferente, mas que também está lutando por seus direitos, nós temos mais chance de transformar as coisas, de transformar o mundo.

 

Você foi candidata à vice-presidência. Você tem planos para as eleições do próximo ano? Você será candidata novamente?

 

Se tem uma coisa que aprendi com meus mais velhos é que cada coisa tem seu tempo. Agora é primavera de 2021. Estou indo para a Escócia, levar a mensagem dos povos indígenas do Brasil para os líderes mundiais que se reunirão na COP26. Agora, é tempo de dizer que nós, povos indígenas, precisamos ser ouvidos, que nós temos respostas para cuidar de nossa casa comum. Que precisamos que nossas terras sejam demarcadas e respeitadas, pois elas são reservas de futuro! Sem terra indígena não tem floresta, e sem floresta não tem futuro. Agora é hora de dizer essas coisas, depois de termos feito a maior mobilização indígena da história do Brasil. Ano que vem pode ser tempo de dizer outras coisas, de dizer mais coisas, em outros lugares... mas isso é assunto para o ano que vem!

 

Quais são os principais desafios que se colocam para os povos indígenas brasileiros na atualidade?

 

Nosso principal desafio tem nome e sobrenome, que eu não gosto nem de pronunciar, mas ocupa o cargo de presidente da República do nosso país. Esse genocida, que já foi denunciado por nós, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, no Tribunal Penal Internacional em Haia, ele está promovendo o maior desmonte das políticas indígenas da história. Foram conquistas que levaram décadas para alcançarmos, que demandaram a luta e a vida de muitos parentes nossos. Ele está acabando com a FUNAI, por exemplo, que agora virou um órgão de perseguição aos indígenas, ao invés de proteção. Você sabe que eu mesma já fui investigada pela Polícia Federal a mando do delegado capacho dos ruralistas que hoje ocupa a FUNAI? Inclusive, a Apib acabou de pedir também a remoção deste senhor deste posto, pois ele é um inimigo dos povos indígenas, e não se pode tolerar que ele coordene as políticas indígenas no Brasil. Esse governo, além das ações diretas contra nossos direitos, ele articula no Congresso Nacional, uma agenda antiindígena que quer impor leis que simplesmente acabariam com a demarcação de terras indígenas, por exemplo. E além disso, esse discurso de ódio que sai da boca do presidente da República incentiva os ataques contra nossos territórios. Em todo o Brasil, aumentaram muito os casos de invasão a Terras Indígenas e isso está associado à política anti-indígena do presidente e de seus aliados, herdeiros dos colonizadores que vêm destruindo nossas terras e matando nossos parentes há mais de 521 anos. Há 521 anos a gente luta para sobreviver e para poder viver em paz, nas terras de nossos ancestrais.

 

 

Mareike Bödefeld es redactora de matices